terça-feira, 2 de junho de 2015

Saúde - a nova doença do Sec. XXI

Por Uva Passa

 

Nem é preciso andar aos encontrões aos maluquinhos do running para perceber que o número de doentes em Portugal quase triplicou desde o aparecimento das redes sociais.
É imperativo ser-se saudável, mas é absolutamente necessário que todos o saibam.
A doença é severa e de difícil tratamento, sendo facilmente propagável por todas as classes sociais e idades, de forma simples, apelativa (afinal trata-se de comportamentos aprovados  e 'gostados' socialmente pela maioria), sem necessidade de aconselhamento médico ou exames de rotina.
Tenho duas pernas e um coração? Tenho um boné e uma garrafa de água? Siga.
Todos podem ficar doentes porque todos estão expostos à doença, e todos parecem anestesiados com a nova droga lícita da modernidade: Saúde - a nova doença do Séc. XXI
O primeiro foco da doença surgiu com a velhinha musculação, que foi ganhando adeptos, e fãs, sobretudo masculinos, que sorrateiramente se esgueiravam para os ginásios do subúrbio deixando as equipas de futebol da escola bastante debilitadas, a as miúdas um bocadinho abandonadas.
Ir treinar passou a ser imperativo, sobrepondo-se a qualquer atividade social que implicasse um certo sedentarismo, agora sou eu e os meus músculos, eu e a minha superação, eu sem equipas, eu sem imposições, eu onde quero chegar, eu independente, eu toxicodependente, agarrado pelas veias ao meu próprio corpo.


Na minha rua o primeiro tóxico-músculos tinha o pescoço mais grosso que a coxa, e a perna mais fina que o braço. Era um adónis em potência. Hoje, o Tó dos Músculos, como era conhecido na escola, passeia umas peles esvaziadas e um pescoço demasiado quadrado para caber num colarinho. Deixou uma legião de fãs, como deixou de conseguir encostar os braços ao tronco; coisa que lhe dá um andar inusitado, arqueado, quase que submisso ao peso da responsabilidade de ter monstros em vez de braços. Foi o primeiro exemplar de uma epidemia que havia de contaminar todos os miúdos do bairro, especialmente os mais franzinos. Se fosse hoje, o Tó dos Músculos não precisava de impor o corpanzil para angariar adeptos no portão da escola; bastava-lhe a internet e um pau de selfie para ser extraordinariamente famoso.

Quando julgava que o foco da doença estava praticamente dizimado pela incapacidade de movimentar pesadíssimos músculos nas pistas de dança dos anos 90´s, a doença soube fintar a disco e a metástase não se fez esperar. Como um vírus ultra-inteligente, desenvolveu várias formas e alapou-se a todos os tipos de pessoas, e o que antigamente estava confinado a escuros ginásios, homens atarracados e mulheres masculinizadas, depressa se alastrou por toda a cidade.

Sou sincera, não morro de amores por mulheres-Madonna e homens-armário, que moldam músculos nos espelhos, totalmente extasiados com o seu próprio desenvolvimento. Diria que se criam a eles próprios como filhas, levando-as à ginástica, à depilação, à massagem, e que ficam horas e horas a olhar fixamente para a sua criação divina, para os seus músculos que inflam e desinflam, na companhia de outras crianças igualmente narcisícas que no fim competem para ver quem tem afinal as mamas maiores. 
É no fundo uma mala Louis Vuitton contrafeita. Por fora uma pele brilhante, muito porque a plastificação lhe dá um ar saudável, e por dentro uma amálgama de conceitos retorcidos pela falsa ideia de saúde, porque por detrás das fobias pelo corpo saudável,  o anti-aging, e a mania da perfeição corporal, estão os escondidos diversos e complicados transtornos obsessivo-compulsivos e alguns consumos tóxicos.

Nos transtornos, a dromomania, traduzida pela mania em andar ou fazer 'caminhadas', é a mais visível. A certa altura a inocente caminhada à volta do quarteirão já leva mais quilómetros que a volta a França, e o corpo ressente-se. A par destes transtornos juntam-se outros igualmente perigosos, como a potomania  - vontade anormal de beber água embora na realidade não exista sede. Beber água a toda a hora - não passar sem um gole de água e todas as pausas servem para hidratar o corpo - é um forte sinal de que está a ficar transtornada/o ou obcecada/o. Quantidades superiores a 3 litros de água por dia podem aumentar o risco de hiponatremia, que é a queda do nível de sódio sanguíneo, podendo causar torpor, confusão e até convulsões.
Os distúrbios alimentares, como a ortorexia, caracterizada pela fixação em hábitos alimentares 'saudáveis, ou restrições alimentares mais ou menos severas, é a face mais visível da nova doença, e desengane-se quem pensa que o problema é apenas fisiológico – com a questão do isolamento social, por ter explicar a toda a hora as diferentes situações da vida, a dieta, os pratos e os restaurantes, nas redes sociais, os prejuízos no aspecto psicológico agigantam-se. Portanto, o que era para ser um hábito saudável torna-se na pior doença.

Daqui até à terrível psiquiatria, é um pulo.
Talvez o melhor seja ponderar se é mesmo necessário corrermos feitos doidos em todas as maratonas da cidade e se ter músculos mais grossos que embondeiros é assim tão estético.
Entre a tartaruga e a lebre, é óbvio quem vive mais tempo, e de resto, se que querem mesmo correr de forma útil, talvez treinar na chegada às reuniões.
Era a cura para o maior transtorno do século XXI e ganhava-se imenso tempo...

2 comentários:

  1. Já enterrei dois amigos que morreram durante a corrida.

    Beijos, Uvinha. :)

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    Respostas
    1. A sério?
      No meu bairro padecem todos (ou quase todos) da doença da pele flácida e da falta de pescoço.
      Muito estão cheios de problemas devido às porcarias que andaram a consumir para aumentar os músculos.
      A mim só me interessa o músculo mental.
      Quero lá saber de ser magra.

      Abraços!

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