Ermelinda
sentiu um calor estranho nas pernas e levantou-se de um salto. “Outra vez não,
foda-se!”
A
incontinência estava a dar-lhe cabo da vida. Na mercearia onde trabalhava de
manhã, a água das alfaces espalhada pelo chão e o cheiro da fruta e do bacalhau
davam para disfarçar, mas já tinha passado duas ou três vergonhas que não lhe
saíam da memória. A primeira vez foi na Segurança Social, enquanto esperava
pelo impresso do RSI. Não fossem as fraldas das gémeas e a coisa podia ter
corrido muito pior. A segunda vez, sem dúvida a mais embaraçosa, aconteceu
enquanto atendia um cliente, no part-time que faz às quartas e sextas no
Monsanto. O homem, camionista Ucraniano de poucas falas, não ficou nada
contente de ver as calças mijadas e, além de não pagar, ainda lhe pregou dois
sopapos que lhe danificaram irremediavelmente a placa acrílica superior,
deixando bem à vista a degradação física a que Ermelinda tinha chegado devido
ao uso continuado de drogas pesadas.
“Puta que pariu esta vida!”, Desabafou enquanto se limpava ao lençol da cama onde ainda dormiam a irmã e o cunhado, ambos desempregados e companheiros de dependência. Bebeu um trago de cerveja morna, acendeu um cigarro e foi preparar os biberões.
Era
dia de visita conjugal e Ermelinda queria ir bem arranjada. Óscar já não era o
homem de outros tempos e precisava de se sentir inspirado para que aquela meia
hora fosse proveitosa. Além disso, um dos guardas era cliente habitual das
sextas-feiras e nestes tempos de crise não podia arriscar perdê-lo. O cunhado
ainda lhe devia duas ‘chuchas’ que ela não estava a ver maneira de receber.
Despediu-se
das gémeas e dos dois filhos mais velhos e foi apanhar o autocarro. Passou pelo café
e comprou dois maços de SG Ventil, marca preferida de Óscar. Ermelinda sempre
foi muito dedicada ao companheiro, mesmo quando ele, toldado pela bebida e pelo
ciúme, lhe batia, a injuriava e ameaçava de morte. Nunca colocou a hipótese de o
abandonar. Afinal, tinha sido o seu primeiro amor (estavam juntos desde que os
pais a entregaram a Óscar, tinha ela treze anos) e uma relação destas é para a
vida. Tem de ser.
Como o autocarro ia quase vazio, aproveitou para meter na veia os vinte euros que tinha comprado à irmã e, depois de guardar a parafernália no fundo da mala, encostou a cabeça à janela e adormeceu.
Eram
quatro e vinte quando chegou a Alcoentre. Depois de ter passado pelos habituais
procedimentos de segurança, entrou no quarto e correu a abraçar Óscar. Falaram
durante uns minutos até que ele lhe disse que estava pronto e lhe pediu para
tirar a roupa. O sexo foi rápido e cru, sem preliminares ou beijos. Fumaram um
cigarro e Ermelinda despediu-se com um “Até para a semana, môr.”
Chegou
a casa já tarde, devido a um acidente na N10 que obrigou a que o autocarro
estivesse parado mais de hora e meia. Cansada e a ressacar, foi ao esconderijo
da irmã ver se havia uma dose que lhe desse para aguentar até de manhã. Não
havia. Saiu e foi ter com um dos traficantes da rua, oferecendo-lhe favores
sexuais em troca de mais umas horas de descanso.
Voltou
meia hora depois, para encontrar a polícia em casa, vasculhando minuciosamente os
trinta metros quadrados do T0 onde viviam, à procura de droga, armas ou material roubado. As crianças choravam
enquanto o cunhado, algemado, chamava “cabrões de merda” aos agentes, que lhe iam
dando uns calduços para o acalmar. Como não encontraram nada, foram-se embora mas
levaram-no acusado de desrespeito e injúrias às autoridades.
Ermelinda
atirou para o chão um monte de roupa suja para libertar o canto do sofá e
sentou-se, chamando a si os pequenos, que entretanto se tinham calado. Nesse
momento entrou a irmã, trazendo um bolo de arroz decorado com uma vela de
aniversário.
“Parabéns, Mana! Vinte aninhos, hein? 'Tás feita uma senhora, tu.”
Muito bom. E esse final é uma espécie de murro no estômago. Está muito bom.
ResponderEliminarVim só aqui dizer que esta foto está FAN-TÁS-TI-CA. É mais ou menos como um gajo bom, a malta bem quer, mas não consegue deixar de olhar.
ResponderEliminarAgora vou ler.
'e, depois de guardar a parafernália no fundo da mala, encostou a cabeça à janela e adormeceu.'
ResponderEliminarVê-se logo que não percebes nada de cavalo pah! Ou então a merda era uma bela merda.
Muito bom.
Vinte anos... coitadinha... há tantas, credo.
Sublime!
ResponderEliminarBolas. Este texto devia ser passado em ecrãs gigantes, nas principais capitais do Mundo. (Nas mesmas onde passam imagens de grande impacto, referentes à realidade em questão).
ResponderEliminarSem alardes,para além do alarde explícito. Há muito que não lia algo tão dramático, escrito de forma tão "dia-a-dia".
Vai lá vai, Gajo...
Bom, muito bom...um aperto na garganta...há tantas, tantas assim...
ResponderEliminarMagnífico meu caro, magnífico.
ResponderEliminarMurro no estômago, parece-me a melhor descrição que tive, ao ler o texto.
ResponderEliminarMimam-me ;-)
ResponderEliminar(In)Felizmente cresci numa zona onde as "Ermelindas" e os "Oscares" não rareavam, salvaguardados alguns exageros do texto. Se a mim fez bem, pela tarimba que ganhei, outros foram na enxurrada dos anos oitenta. Tenho fotos de aniversário em criança, onde sou o único de dois ou três que ainda estão vivos ou "cá fora". E éramos uma boa dezena deles, à volta da mesa. Dos limões deixados pelos amigos na entrada do prédio, à repressão policial, passando pela fama de ser tudo menos santo, tive uma infância e adolescência cheias de aventuras, é o que vos digo.
Já agora, a única coisa que percebia de 'cavalo', era o alívio que sentia nas dores do siso, depois de fumar um 'cadito' e nunca mais que isso ;-)
E sim, ainda há muito disto, já ali ao virar da esquina.
É pá, isto é duro de ver e ler. Foco o olhar naquela criança que não sabe bem se é jogar á bola que quer.
ResponderEliminarCaramba, esta merda de vida que muita gente leva. As crianças, porra, as crianças. Aperta-se o coração.