Quiescente

No início era a Pastilha, e a delicada voz da psicoterapeuta reverberava na plácida superfície das águas na minha mente. Sussurrava, terna, iludida no incentivo, “socializa mais e trabalha menos, a tua urbanidade torna-te apetecível”. 
“Faça-se então préstimo desta pequena enteléquia, no caminho da Luz e do crème-brûlée”, pensei, e logo me pari para a blogo, acabada de inventar havia dez anos. Foi tão súbito que me assustei. Por pouco não desfaleci com o fragor de vozes. Ah(!), e como foi excruciante passar a cabeça...
Mas vi que era bom. 
Assim nasceu “onónimo”, o simples, o rude, o viril.
Como todos os seres, reais e imaginados, nasceu e cresceu, rústica jovialidade pueril progressivamente substituída pelo cepticismo adequado à afabilidade dos tempos.
Entre tantas crises de identidade e uma adolescência boémia, óbvia reminiscência de árduo parto distócico, o onónimo, no eterno devir dos seres, finalmente tornou-se “quiescente", em nome e coisa, bondoso, meigo (e tranquilo como nunca imaginara).
E foi bom.
No entanto, nem tudo que é bom é duradouro.
Conhecido este devaneio de identidades, tornou-se inevitável ter à porta aqueles pérfidos alfaiates que insistem em vestir-nos casacos brancos ao contrário. E as fivelas, Deus(!), porquê as fivelas?
Exilei-me nas caixas de comentários das boas almas que me acolheram, passando a melancólica solidão dos dias contemplando o suave correr do rio e aconselhando carinhosos casais de pardalitos que adejavam até ao meu pequeno mundo, circunscrito por uma pérgula de videira e cerúleo algodão.
Cansei-me dessa vida, da indolência diletante de um romântico, do desvario de contumazes pardalitos. Quero agora voltar a ouvir as ondas do mar.
Interroga-me a psicoterapeuta: “Foi para melhor?”
Não sei. Seguramente “Foi para diferente”.
E é bom.
[Vós que aqui entrais: libertai-vos dessa arreigada circunspecção, dessas débeis peias do formalismo. Só por engano e negação plausível aqui se usa o acordo ortográfico, novo ou antigo. E alitera-se até não poder mais...]

6 comentários:

  1. Só por curiosidade, fala como escreve? Palavreado muito rico, pouco usual.

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  2. Claro que sim!
    Nas obras só mandamos piropos para disfarçar.
    Quando ninguém nos ouve recitamos poesia!
    Abraço!

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  3. Excelente! Eu lá no fundo sabia que algo mais haveria no piropo que fez correr tanta tinta há uns tempos (sem nada se concluir, claro).

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  4. Deleitei-me na dulcíssima leitura de tão bela e profunda reflexão.
    Aparentemente, um texto cheio de floreados, de palavras 'caras', daquelas cujo valor é tão exorbitante que poucos lhes podem chegar.
    Mas isso é só aparentemente. Depois de o lermos e relermos, sentimo-nos invadidos por uma paz imensa. Um desejo incontrolável de liberdade, de cortar as amarras que nos prendem às regras e às leis obsoletas da nossa sociedade

    [ só não me libertei da circunspecção porque, em boa verdade, nunca a tive... ]

    Gostei muito, caro onónimo.

    Maria

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    1. Ah, cara Maria, encontro-a aqui, nesta viela meia esquecida.
      Obrigado. Por ter visto com clareza muito além da aparência.
      Abraço!

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    2. Por vezes, é nas vielas mais escondidas e esquecidas que encontramos a luz mais brilhante e mais límpida.
      Obrigada, caro onónimo, pela gentil resposta.
      Um abraço.

      Maria

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