Snooker |
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É óbvio que sim, tão óbvio que se torna incompreensível, quase exasperante, a predilecção, tempo e simulado afecto que os media devotam ao futebol profissional(2).
Pouco mediática, porventura felizmente, algo semelhante a uma cinematográfica série B, existe uma quase ignorada imensidão de modalidades desportivas que evocam a brandura da paciência tão ausente naquele sucedâneo corporativo, o pão e o vinho da ecúmena, consubstanciados em entretenimento ou histérica felicidade de rua, a triste catarse de vidas aparentemente incompletas na alegria tola que transbordam.
Desportos que entusiasmam intrinsecamente o público que lhes devote alguma atenção, na ausência do mitómano sectarismo adepto/vedeta, vagamente desligado da realidade, pensamento embotado, assertividade cedida, apoio incondicional de ídolos concebidos nos apertados cubículos de departamentos de marketing e plataformas comerciais, essa poeira ao vento que irrita o olhar(3).
Abandonando esta argumentação de antítese, e a aliteração forçada, um desporto que suscite o gáudio e o aplauso do público independentemente dos participantes, que nos surpreenda recordando o desportivismo das crianças entre amigos numa brincadeira que não pretendem terminar.
Mas, desses, qual deles se destaca pela inexistência de correria, esforço supérfluo e transpiração, e, no entanto, não se jogue sentado, exija um certo cuidado na indumentária e não entedie de sono(4)?
O momento, a multidão suspensa no rectângulo verde, a concentração na bola, na outra bola, no alinhamento com o buraco, na habilidade com o pau. Silêncio e reflexão. Respiração sustida. O toque do pau na bola, ora delicado ora vigoroso. Respiração ainda sustida. A antecipação. Movimento determinístico apesar de tenuemente caótico. O sorriso partilhado pelo trajecto ridículo que um inesperado ressalto origina. Aplausos ao jogo, aplausos ao homem, aplausos uns aos outros pela partilha do momento.
Algo que ecoa nos recessos da nossa mente desde o vetusto pleistoceno...
O campo verdejante, a aptidão no manejo da vara, a concentração nas bolas, o mítico buraco onde todo o pensamento cessa. O pau na bola, a bola no buraco. A preparação para a tacada seguinte.
O homem e o seu pau, público aplaudindo em júbilo.
Ocasionalmente interrogo-me(1) se será ainda possível, nesta sociedade mediática, copiosamente impaciente e apressada, alheada num paroxismo de gratificação rápida e descartável, encontrar um desporto com a elegância e a tranquilidade de outras eras, um desporto de cavalheiros.
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Pouco mediática, porventura felizmente, algo semelhante a uma cinematográfica série B, existe uma quase ignorada imensidão de modalidades desportivas que evocam a brandura da paciência tão ausente naquele sucedâneo corporativo, o pão e o vinho da ecúmena, consubstanciados em entretenimento ou histérica felicidade de rua, a triste catarse de vidas aparentemente incompletas na alegria tola que transbordam.
Desportos que entusiasmam intrinsecamente o público que lhes devote alguma atenção, na ausência do mitómano sectarismo adepto/vedeta, vagamente desligado da realidade, pensamento embotado, assertividade cedida, apoio incondicional de ídolos concebidos nos apertados cubículos de departamentos de marketing e plataformas comerciais, essa poeira ao vento que irrita o olhar(3).
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Mas, desses, qual deles se destaca pela inexistência de correria, esforço supérfluo e transpiração, e, no entanto, não se jogue sentado, exija um certo cuidado na indumentária e não entedie de sono(4)?
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Salta ávido ao espírito: o Snooker.
O trato de cavalheiros, o aprumo da indumentária(5), a tranquilidade do gesto, a quietude de uma vespertina tertúlia na arcádia, a maravilhosa atitude do público.
Não interessa se fulano se sicrano. É o jogo em si. Apoia-se secretamente aquele que segue um pouco atrás na pontuação para podermos ver mais, sempre mais, como se conseguíssemos escapar ao jugo do Tempo durante todas aquelas infindáveis horas que dura a partida.
Sem vaias, sem assobios, saltos e gritos tresloucados de uma turba buliçosa, sem vidro partido, sem carne lacerada.
Enfim, um desporto que podemos ver na companhia dos filhos sem qualquer preocupação, embora se jogue com paus.
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O momento, a multidão suspensa no rectângulo verde, a concentração na bola, na outra bola, no alinhamento com o buraco, na habilidade com o pau. Silêncio e reflexão. Respiração sustida. O toque do pau na bola, ora delicado ora vigoroso. Respiração ainda sustida. A antecipação. Movimento determinístico apesar de tenuemente caótico. O sorriso partilhado pelo trajecto ridículo que um inesperado ressalto origina. Aplausos ao jogo, aplausos ao homem, aplausos uns aos outros pela partilha do momento.
Algo que ecoa nos recessos da nossa mente desde o vetusto pleistoceno...
O campo verdejante, a aptidão no manejo da vara, a concentração nas bolas, o mítico buraco onde todo o pensamento cessa. O pau na bola, a bola no buraco. A preparação para a tacada seguinte.
O homem e o seu pau, público aplaudindo em júbilo.
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E termina. Como quase tudo aquilo que é bom, termina demasiado depressa.
Venham esses ossos, sem segredinhos ao ouvido, apesar dos paus nas mãos.
Ainda há esperança…
Shaun Murphy & Stuart Bingham Betfred, World Snooker Championship, Crucible Theatre, Sheffield |
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… for a secret never to be told …
(1) – Sempre em momentos de necessidade de um análogo à serenidade da Antena 2 na cacofonia de feixes hertzianos, de um pequeno refúgio para a mente na confusão absurda do quotidiano, no rugido da banalidade dos solilóquios surdos de comentadores que preenchem os espaços mortos da comunicação social.
(2) – Palavra de agnóstico, sem clube, sem partido, sem religião.
(3) – Interrogo-me, neste enlevo ocioso, se irei eventualmente louvar algum desporto ou se fico pela desamparada, e extemporânea, crítica social.
(4) – Entenda-se sempre a primeira pessoa do singular, e a óbvia exclusão do Xadrez, entre o declínio da guerra fria, a ascensão de máquinas com nome de filme pornográfico e de adolescentes de semblante estranho em tamanha concentração, com o agravo das alegações de correlação insignificante com o nível de inteligência. Há mérito no companheirismo do Ciclismo, que perde pela transpiração e bronzeado da construção civil, oh, como o sabe o quiescente, que participa em ambas as modalidades. Espera-se um mínimo: nunca enfadar tanto quanto os fastidiosos posts do onónimo, que nunca se decide se de encómio se de diatribe, se ambos, se nenhum, consequência de trauma de infância - tentou, sem sucesso diga-se, voar por meios próprios.
(5) – Falha um pouco no laço. No entanto, a gravata pendendo do pescoço seria (quase) impraticável.
:)
ResponderEliminarO que eu gosto deste méne...
Caro Onónimo Quiescente,
ResponderEliminarUm texto com futebol, pão e vinho e séries B, tempo sem vaias e aplausos pela partilha, só pode ser vencedor.
Abraço,
Outro Ente.
Abraço, meus Caros!
ResponderEliminarFilipa, prometo não me enganar na hora na próxima semana!
(quem não morrer de tédio fica mais acordado ;)
Chiiiiiiiiiiiiiiiiii que coisa mai linda de post.
ResponderEliminarEste post é espetacular! É mesmo isto pá.
ResponderEliminarExemplo máximo de cavalheirismo, é distribuir uma tacada centenária por oito buracos sem que ninguém perca a compostura.
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