quinta-feira, 17 de setembro de 2015

À procura do zero

Por Linda Blue

Pronto, tinha várias ideias em mente, que é o que me acontece quando não tenho nenhuma. Perguntei o que é que preferiam que eu fizesse, se o pino contra a parede ou uma lição de Origami — tudo coisas que não sei fazer, mas aprendia só para vózês —, se um tutorial youtuber sobre como tirar nódoas de um vestido verde — em vários episódios, sendo que, no último, as p. das nódoas não saem, mas ele fica com um fedor bom, ai, desculpem o spoiler, ou lá como é que se diz, e também o mau jeito —, ou ainda se queriam que eu falasse da minha vasta experiência em enfrentar lagos de chichi e montanhas de cocó, apostos em todo e qualquer material que possuamos em casa, ou, em alternativa, vomitado. É que eduquei uma pessoa, de entre as várias que coloquei em o vosso planeta, que regurgitava com uma tal avassaladora frequência e em inóspitos recantos da casa afora e fora dela, que me forneceu, quase à bruta, um workshop subordinado ao tema Apanha o vomitado antes que escorregues nele e faças um traumatismo cranio-encefálico mal-cheiroso que nenhum médico giro vai querer tratar, ainda que de work lhe tenha conhecido todas as vertentes, mas de shop nem uma, a menos que consideremos a quantidade de detergentes que cada aventura gástrica das que vivi me fez despender, embora não as tenha vivido na primeira pessoa, porque até isso me foi vedado, tendo sido a protagonista outra, e eu relegada para segundo plano, ou actriz secundária, e só podendo aspirar (de aspirador em riste) ao papel principal caso se desse um turn around na porcaria da situação de porcaria, e o filme fosse titulado mais ao menos ao nível de Que bela empregada doméstica que me saiu na rifa.
Também posso relatar o número de vezes que uma das gatas marcou território nas paredes, nos objectos, debaixo de camas e armários e — épico — na árvore de Natal, com espirros e jorros para os embrulhos. Do mesmo modo, tenho conhecimentos vastos, porém profundos, ao nível do extermínio de piolhos, que há-de ser o único animal a que retiro a vida, e logo em série, e pelo qual terei que prestar contas no juízo final, se ainda me sobrar algum.

Por acaso, não foi bem assim, mas lembro-me de ter perguntado se queriam que falasse de algum tema em especial, daquele vasto universo que eu domino, qual deusa da conversa da treta. Ninguém me respondeu, agora amuei, dói-me a barriga, já não brinco, vou dizer à minha mãe e vou falar do que me apetecer. Isto era só um introito, seja lá o que isso for.

Eu tirei a carta de condução. Fiz 69 aulas práticas, por contingências que não vale a pena relatar assim, de chofre, mas tirei-a (ou arranquei-a?). E aqui vos deixo o diário da primeira aula. Se, por qualquer motivo ao qual sou alheia, quiserem ler as 68 que faltam para o desenlace, é pedirem com jeitinho, que eu vou pensar, e depois dou-vos uma resposta com mais calma.

 ~ 

 1.ª Aula — 26 de Novembro 

Querido diário: 

Hoje guiei. Nem acredito, guiei um carro! Aquilo é exactamente como eu sonhava. Tão giro, parece um filme a passar à nossa frente — em 3 D, ou, se quiser ser rigorosa, em 4 D —, mas com as imagens a correr muito depressa. No fundo, hoje foi a minha entrada na quinta dimensão.

Comecei por me dirigir à porta do passageiro, por uma questão de hábito. Este é, de todos, o primeiro a perder. Preciso de fazer uma mnemónica — lado do volante => minha porta. Mal entrei no carro, tentei pôr o cinto de segurança. A minha ideia era dar à chave, meter o pé no acelerador (que eu nem sabia qual dos três pedais era, mas ia por tentativas), e sair pela cidade, em passeio. O instrutor deve ter suspeitado das minhas intenções, porque me disse logo que tinha que me dar “umas instruçõezinhas” primeiro. Deu-me uma verdadeira aula teórica, da qual eu só ouvi metade, porque continuava a sonhar em sair dali o mais depressa possível. Até que, finalmente, ele destravou o carro e começou a viagem mais delirante de toda a minha vida.

O bairro estava particularmente calmo, e nem sequer era de madrugada. Acho que fiz tudo bem feito, sorri para todos os automobilistas que se cruzaram comigo (numa de "andamos todos ao mesmo") e não apitei a nenhum. De resto, o instrutor nem me disse onde ficava a buzina. Levou-me para uma zona completamente deserta, ao pé do Carrefour, mas que tem montanhas de passadeiras, cruzamentos, curvas, subidas e descidas. Não tem é pessoas, nem cães, para eu ir treinando.

A certa altura, achou que eu já estava apta para experimentar os pedais -até ali, tinha ido só com o volante, e eram os pés dele que os dominavam. Disse-me uma graça que, se calhar, diz a todos os alunos: que são três pedais e só dois pés, daí a dificuldade. Mas eu cá multipliquei logo aquilo e concluí que, se cada pé pode ir aos três pedais (numa dança louca por baixo do volante), há, pelo menos, cinco possibilidades a considerar, só com os pés. Também acho que o pedal da embraiagem devia estar à direita e o acelerador à esquerda: como dextra que sou, tal como a maioria da população, canso imenso a perna esquerda a enterrar o pé na embraiagem. Por outro lado, a perna direita é tão pesada, que ele passou a aula toda a dizer "Ó ai, ó Linda, ó ai, ó Linda, não acelere tanto!". Foi para aí o momento mais erótico da aula toda.

Amanhã é outro dia. Tenho outra lição, e agora o meu objectivo é fazer entender ao meu instrutor que tem que ganhar confiança em mim.

Beijinhos

Blue

3 comentários:

  1. Oh... vá lá... conta as outras 68 aulas... por favor...

    (Já chega?)

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  2. Muito bem. Há uma ribombante maioria de comentários clamando pelas 68 aulas que faltam.
    :D
    Obrigada, meninas.

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