terça-feira, 26 de maio de 2015

"Nós"

Por Onónimo Quiescente


Estórias de Arlequim
- #1, d’ O Amor -

Cupido e Psique
William Bouguereau

A narrativa do amoroso Arlequim começa, como tantas outras, na ingenuidade do Sonho, o inocente idealismo da adolescência, repleta de lirismo literário, desprovida daquele pragmatismo que a Realidade outorga apenas no decurso do Tempo - homens sábios chamam-lhe Maturidade, pretexto de toda a Desilusão.

São tempos idílicos para Arlequim, tempos em que sonha voar, irrestrito, saciado unicamente pela simples companhia da sua alma gémea - Amada.





O Beijo
Auguste Rodin

Arlequim é jovem, infrene. Amada corresponde em igual medida. Ambos leram os bucólicos romances de amor clássicos. Ambos cometeram o pecado de acreditar neles.

Leram também as tragédias e agarraram-se à ideia ardente do ethos do samurai. Nada mais nobre existe que pugnar e morrer lutando no campo de batalha do Amor.

E são felizes. Incomensuravelmente felizes. Sentem-se Completos. Imergem ainda mais na ilusão do Sonho. Lêem Borges juntos, na suave voz dos amantes - mas não o compreendem, românticos como são.

Agarrados nas quelíceras do Afecto, revêem-se na tragédia do Paraíso. Nada ousará separá-los. Encontram em Milton o perfeito reflexo de uma tão antiga utopia, o Amor como Sacrifício, porque a Perda seria ainda mais insuportável...

And mee with thee hath ruind, for with thee certain my resolution is to Die ...
Yet loss of thee would never from my Heart, no no,
I feel the link of nature draw me flesh of flesh, bone of my bone thou art,
and from thy state mine never shall be parted, Bliss or Woe.

Paradise Lost
John Milton



Os Amantes e O Tempo
quiescente, 1.º 

E crescem juntos. Apercebem-se, naquele íntimo que apenas muito delicadamente roça a consciência, que têm um Inimigo, algo que pode ilidir o Amor que mutuamente partilham: O Tempo.

Reconhecem que a Matéria não transcende o Tempo. Ambos agnósticos, duvidam também que a Mente transcenda a Matéria. São coisas sentidas. Sabem que não podem, por escolha, alterar aquilo que sentem ser real. Sabem agora que o Amor não é Absoluto.

Choram juntos essa exegese. Procuram desesperadamente o conforto que o Abraço proporciona. Parecem ainda mais arrebatados face à finitude da existência. São mais intensos.
O Tempo passa.


Tu e Eu não somos Nós
quiescente, 1.º

Compreendem que o inextricável nó, sonhado infinito, afinal cercado pelo Tempo, é a ilusão que criaram para si próprios. Esta revelação marca o início da idade adulta de Arlequim e Amada.

Têm interesses diferentes. Querem crescer em sentidos divergentes, Amada nas Artes, Arlequim no pragmatismo da Ciência Aplicada. Ambos crêem ter escolhido o caminho mais adequado para se compreenderem a si próprios no Mundo.

Torna-se mais intensa a percepção da existência de Outros mais próximos de cada um deles na sua mundividência. Melancólicos, observam que é a própria Individualidade que os separa. Não podem regressar ao mesmo mármore de onde brotaram sem deixarem de ser quem são.

Nascem os primeiros espinhos. Torna-se dolorosa a proximidade. Estar juntos magoa-os, naquela sedição afectiva.

Arlequim repara, nostálgico, que a pouca ciência que estudou nada disto explica. Não se repelem por serem iguais. Afastam-se exactamente por serem diferentes. O Tempo não estica, mas o gradiente da separação aumenta. Clausius e a sua segunda da termodinâmica, parece-lhe, descreve a natureza do Afecto com uma acutilância demoníaca.
É o fim da Ilusão.



Drop
Rui Matos
olhares.com 

Estará tudo perdido, interroga-se, será um títere coarctado pelas circunstâncias, será o Mundo um enorme palíndromo - se olharmos suficientemente longe talvez nos encontremos a nós próprios, numa outra vida sonhada?

Não. Ficou a Memória, triste e arrebatada em simultâneo, um pedestal ao conhecimento, ao Belo vivido.

Muito mais tarde Apaixona-se novamente. Sabe que não existem absolutos imutáveis. É prudente. É a era do exercício restrito do Afecto. Sabe que tanto poderá falhar por excesso como por omissão. Não lhe interessa.

Para Arlequim o Momento transcende agora o Tempo. Talvez tenha aprendido algo. Talvez esteja apenas a confundir Cinismo com Prudência. E recorda algo que leu em rodapé. Já lá estava, no Início…

O melhor é voltar-me para o Lado Esquerdo e assim,
deslocando todo o peso do sangue sobre a metade mais gasta do meu corpo,
Esmagar o Coração.

Carlos de Oliveira


3 comentários:

  1. O Tempo. O malvado tempo que emerge a realidade e imerge a hominalidade.
    Hoje em que o cêntimo dita a lei tudo se torna mais fácil e quando o dinheiro acaba o amor salta pela janela.
    Tem que ir como anónimo senão não entra.
    Abraço!
    Corvo.

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  2. Abraço, cara Maria e caro Corvo.
    Prometo algo mais alegre na próxima semana ;)

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